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Na palma da mão: intimidade e espetáculo em Carolina Maria de Jesus

Valeria Rosito, UFRRJ/GEDIR- Gênero, Discurso e Imagem

 

 

 

Histórico e norte do projeto

 

O projeto originalmente intitulado Na palma da mão: intimidade e espetáculo em Carolina Maria de Jesus, em andamento desde 2012, se articula entre a docência e a pesquisa desde seus momentos inaugurais. Com um total aproximado de 200 participantes até hoje (40 por semestre, em média), o projeto envolve basicamente estudantes de graduação em Letras, entre os quais se destina somente uma bolsa CNPq/PROIC nos últimos quatro meses. Seu título procura sintetizar a busca que se originou na persona midiática de Carolina Maria de Jesus, excessiva e meteoricamente exposta pelo sucesso do best seller Quarto de Despejo (1960) para tanger, e possivelmente apreender, a complexidade de sua subjetividade a partir das formas que a escritora movimentou - tão variadas e volumosas quanto incompreensível o recolhimento a que foram sujeitas. Uma oportunidade para interrogar os (des) caminhos da literatura e da brasilidade na turbulência continuada da modernidade para a pós. Afinal, a enxurrada de testemunhos de exílio no último quartel do século XX, seguida da plêiade de personagens ‘desterritorializados’ na prosa ficcional contemporânea, respondia por agendas formais e temáticas bastante contrárias às da ficção, da dramaturgia e da poética de Carolina de Jesus. Por ‘obsoletas’, no entanto, suas formas não- testemunhais deveriam se provar minimamente intrigantes aos processos ‘formativos’ da ‘literatura brasileira’; a começar por exigirem a revisão de objetos e de métodos de pesquisa privilegiados no domínio beletrista.

    Em etapa conclusiva, a primeira fase deste projeto vem ocupando o time de pesquisadores em Iniciação Científica com a transcrição dos manuscritos microfilmados, integrantes da Coleção Vera Eunice. Sob a guarda da Fundação Biblioteca Nacional (BN) desde o convênio com a Library of Congress, promovido pelos historiadores José Carlos Sebe Bom Meihy e Robert Levine em meados da década de 1990, a coleção se integra por dez rolos de microfilmes contendo parte substanciosa dos escritos de Carolina Maria de Jesus. Além da maior parte de seus diários, incluem-se contos, romances, peças, poemas, provérbios, canções, além de material jornalístico sobre a escritora, com textos e imagens. A transcrição do já transcrito e parcialmente publicado pelos mesmos historiadores há vinte anos é um entre muitos dos flagrantes do restrito acesso ao espólio da escritora e da precária circulação da pesquisa nas principais instituições supostamente incumbidas de sua guarda e disseminação.

Como vem apontando o pesquisador Sergio Barcellos (Barcellos, 2014), a ausência de organicidade e unidade e a dispersão por quatro instituições e 3 estados dos textos da escritora, acentuam os entraves à pesquisa. Acrescente-se ainda que o acesso ao material é limitado por fatores que envolvem condições de atendimento do setor de manuscritos da BN, tais como precariedade de ventilação no salão de consulta, com consequente limitação de horários de ingresso público nos meses mais quentes do ano, além das greves e paralisações que afetaram o atendimento durante boa parte do tempo em que esta pesquisa vem se realizando.

No que diz respeito à natureza intrínseca da pesquisa, emergem ainda dificuldades procedentes da deterioração do material microfilmado, como manchas d’água e de fungo, ou páginas mutiladas, que inibem ou impedem sua leitura e transcrição. Não raro ainda, a tinta da caneta usada ‘atravessa’ páginas de uma mesma folha, sobrepondo textos com camadas de sombras e manchas. A familiarização com os contextos histórico-sociais referenciados pela escritora se figuram como facilitadores ou complicadores da ‘decifração’ dos conteúdos da escrita cursiva, irregular, fragmentada, rasurada, gramaticalmente ‘inculta’ e referencialmente ‘culta’ de Carolina Maria de Jesus - constitutiva de uma “poética de resíduos”, nos termos de Raffaella Fernandez (Fernandez, 2014). O treinamento e a orientação compactados e introdutórios por parte da direção do projeto aos pesquisadores iniciantes se calçam ainda na exploração de uma cartilha, elaborada heuristicamente ao longo da pesquisa, com os principais elementos cursivos, lexicais e sintáticos recorrentes na escrita caroliniana, tais como o desenho ambivalente das vogais; o de algumas de suas consoantes como c, l, b e v; ou mesmo a proximidade entre o dígrafo rr e as consoantes m e n. A despeito dessas estratégias laborais compensatórias, a ausência de formação em crítica genética acaba por determinar, via de regra, a opção preferencial pela ação em duplas de pesquisadores, que se debruçam sobre os cadernos da escritora na sequência imprimida pela BN quando da microfilmagem. Dessa forma, os estudantes se expõem, aleatoriamente, a gêneros diversos da lavra caroliniana, em fragmentos com extensão de vinte páginas digitadas em resultado final.

Além da exposição a material inédito, as ações de realização deste projeto – na exigência de deslocamento dos ‘corpos’ dos pesquisadores até os sítios ‘físicos’ de disponibilização do material - desafiam o horizonte das respostas instantâneas pelas buscas virtuais. Muitos destes pesquisadores encontram-se em seus primeiros períodos de formação em Letras, sendo que em sua maior parte nunca haviam estado na Biblioteca Nacional. Ao final de seu périplo, são apresentados a máquinas leitoras de microfilmes, substitutas pouco amigáveis dos métodos de pesquisa instantânea. Descortinam, por outro lado, realidades insuspeitas sobre lugares de saber - seja pela escritora pesquisada, e desconhecida das Letras, seja pelo vasto material de sua lavra fora do domínio público.

Uma nova etapa da pesquisa já se configura neste momento em que nos aproximamos do final da transcrição do penúltimo dos 10 rolos da coleção Vera Eunice. Trata-se da indexação, em caráter piloto, de parte dos diários carolinianos, com formulação de campos de busca ainda a serem plenamente definidos ao longo do tratamento da produção de Carolina Maria de Jesus. O banco <machadodeassis.net> organizado pela Profa. Marta de Senna antecipa o sucesso desse instrumental de pesquisa em esforços análogos. Histórico e etapas produtivas daquele projeto, generosamente compartilhados pela pesquisadora da Casa Rui em encontro recente, dão mostras ainda da complexidade daquele processo que tem ao centro a escrita de alta densidade da “flor de nossa planta de estufa”, cujos artifícios de embuste confundiram leitores, editores e críticos em seu tempo.

Os desdobramentos palpáveis do contato dos pesquisadores em iniciação científica com os manuscritos no âmbito da tríade pesquisa-docência-extensão se traduziram por 01 monografia de graduação, já defendida, 04 em andamento, 01 projeto de mestrado aprovado fora da instituição de origem da pesquisa, mais de três dezenas de trabalhos de iniciação científica. Nestes últimos se incluem miniensaios publicados em livro (Salgado & Rosito, 2013) e mais de 10 pôsteres assinados por estudantes. Uma das três peças inéditas da dramaturga, “Obrigado, Sr. Vigário”, foi levada aos palcos pela primeira vez, sob o título de “Salve Ela! Carolina Maria de Jesus em Cena” em junho passado (2014), nos teatros da UFRRJ,  também como resultado do alcance extensionista desta pesquisa.

Oito de dez pôsteres com resultados das pesquisas estão expostos neste Encontro Nacional em torno de Carolina Maria de Jesus  - para além dos diários. A dimensão dos interesses dessa amostra atesta a rentabilidade dos ‘estudos carolinianos’ – entendidos como todos os que partem da escritora sem, no entanto, se esgotarem nela. Na linha comparativista, Jéssica Santos ensaia, Uma Outra Aparecida: os quartos de despejo e as salas de visita, sobre as condições de escrita das contemporâneas Carolina Maria de Jesus e Clarice Lispector à luz de seus lugares sociais polarizados. No caso desta, trata-se da exploração recorrente, seja em suas crônicas, seja em sua ficção, de figuras subalternas, com destaque para empregadas domésticas – identidades que alavancam a experiência da linguagem como constituinte do eu da narradora. No caso daquela, trata-se da exacerbação dessa mesma experiência ‘de si’ em vista de deslocamentos de classe, gênero e raça. Em ambos os casos, proximidade e estranhamento na contiguidade espaço-temporal biográfica e temática. Em Lutar com palavras – ecos dissonantes entre Carolina e Drummond,  Luciano Marques e Felipe Andrade também se valem da aproximação entre a escritora mineira e um conterrâneo notável, para sugerirem, na disparidade de classe, gênero e raça que os aparta, a universalidade de seus enfrentamentos com a palavra.

No horizonte da diversidade de gêneros pela artista estudada, Danielle Mariana Maia Rosa e Elisa Coutinho em “Salve Ela, a ‘Vedete’ da Favela”: Carolina Maria de Jesus – poeta, compositora, cantora e escritora enfocam a natureza performática e teatral de Carolina de Jesus. As canções recheadas de auto referências, gravadas pela própria compositora, dão mostras da liberdade pouco conhecida dessa mulher que desafiou a ‘fixação’ de sua identidade nos contornos estreitos que lhe eram reservados. A mesma escritora da fome e da miséria, celebrizada em Quarto de Despejo surpreende como a sambista que se fantasia com lâmpadas e penas apresentando-se, sem modéstia, como a ‘vedete da favela’. O privilégio gozado pela escrita testemunhal responde, adicionalmente, pelas restrições à produção não diarística da escritora mineira, como vemos. Carolina Silva, Fabiane Silva e Jamilis Machado apreciam em Vidas esquecidas, vidas lembradas: a poesia de Carolina Maria de Jesus a lavra poética de Carolina Maria de Jesus. A partir da exploração temática do poema Vidas, que homenageia ‘grandes nomes da história universal’, as pesquisadoras sugerem que o ‘esquecimento’ da produção de Carolina Maria de Jesus se explica com base nos mecanismos de recalque acionados pela própria natureza universalizante da escrita histórica. Talita Souza também adentra a produção pouquíssimo conhecida da escritora, sua prosa ficcional em Diálogos com Carolina Maria de Jesus: ficção e documento. Ocupa-se das construções do feminino, conforme expressas em Dr. Silvio, um dos romances da escritora, em contraste com os registros de gênero em seus diários. Aqui, a opção clara da escritora negra pela escrita em substituição aos homens. Lá, o elogio à heroína que suporta humilhações para sustentar o casamento, acima e na frente de qualquer outro valor. Tensão flagrante do devir feminino em seu turning point de meados de século XX?

Sobre essa ambivalência, é em Amores rabiscados: diário de uma favelada que Luciano Marques aponta para as rasuras na expressão dos afetos em Carolina Maria de Jesus. A exacerbação do deslocamento da escritora, assim como a afirmação de sua sexualidade, é explorada à luz de sua expressão textual, com recurso aos conceitos de dialogismo. Identidade e alteridade são polos de um eixo afetivo sobre o qual se organizam, espacialmente, os homens da favela contra os homens de fora da favela. Mais uma vez, a determinação espacial, categoria de análise crucial na fruição de Carolina Maria de Jesus, ganha destaque em Espacialidades nos escritos de Carolina Maria de Jesus, de autoria de Débora Salles. A atenção para o enlace entre ‘ser’ e ‘cenário’ confere aos elementos descritivos sopro narrativo, num movimento dialético em que as paredes do ‘eu’ passam a se revestir do que lhes era externo.  Finalmente, Camille Batista se volta para os aspectos materiais dos manuscritos, que flagram o processo criativo de Carolina Maria de Jesus. Ressaltando suas marcas de revisão e de leitura e seu tratamento ajuizado na escolha de léxico e sintaxe, comprova o esmero formal da escritora num corpus que também é de dicção poética – no imbricamento entre o lírico e o ‘engajado’.  

A projeção de novas pesquisas e de novos pesquisadores para ‘muito além dos diários’ vem permitindo, portanto, dimensionar as possibilidades de um espaço de resistência na ordem simbólica, tensionado entre a intimidade do desejo e o espetáculo da fama. O lapso meteórico entre ascensão e queda de Carolina Maria de Jesus, em finais da década desenvolvimentista, se oferece como depositário inestimável para Estudos de Gênero e das literaturas ‘menores’ na contemporaneidade. É fértil o momento de crise na teoria da literatura e fecundo o fortalecimento da interdisciplinaridade com a incorporação de vieses culturalistas aos estudos literários.  

 

 

Referências bibliográficas

 

BARCELLOS, Sergio. Arquivando Carolina: desafios e surpresas na organização do arquivo de Carolina Maria de Jesus. Conferência para o I Colóquio Internacional do GEDIR – Gênero, Discurso e Imagem e III Persona, realizados de 10-11 de junho de 2014 na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. No prelo.

FERNANDEZ, Raffaella A. Manuscritos fraturados: inventário ou invenção? Artigo preparado para o I Colóquio Internacional do GEDIR – Gênero, Discurso e Imagem e III Persona, realizados de 10-11 de junho de 2014 na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. No prelo.

SALGADO, Graça & ROSITO, Valeria (orgs). Degenerações: perspectivas de gênero nas artes e nas ciências. Seropédica, Rio de Janeiro, EDur, 2013.

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